O desejo pela construção deste trabalho está articulado a história da minha formação. No 3º período da faculdade comecei a estagiar na AFR (Associação Fluminense de Reabilitação) e lá atendi uma criança de 7 anos por quase dois anos que tinha uma mãe psicótica. E a maioria das questões trazidas na análise por aquele menino eram relativas a sua difícil relação com a sua mãe. Certo dia essa mãe estava em casa com seu bebê, quando de repente começou a ter algumas alucinações auditivas, ela ouvia o barulho de um trem que vinha na direção de sua casa e para salvar o seu filho do pior ela o toma nos braços e o arremessa pela janela. Esse caso despertou o meu interesse e me fez querer saber mais de como o sujeito era estruturado numa psicose.
Após essa experiência comecei a buscar a minha inserção nos dispositivos de saúde mental. Tive uma passagem pelo CAPS da UERJ, onde no meu primeiro dia levei um tapa na cara de uma usuária como convite ao trabalho na saúde mental. Depois disso iniciei o estágio no IFSM (Instituto Fluminense de Saúde Mental) trabalhando no Hospital-Dia. Vale lembrar que antes tive a experiência de estagiar no CTI de um Hospital do Coração, e eu comecei a perceber que eu passava mais tempo com os pacientes desorientados, falando um monte de loucuras do que com os outros. E paralelamente a esses estágios, eu estava no SPA (Serviço de Psicologia Aplicada) da FAMATh e recebi alguns pacientes psicóticos. Um deles eu já atendo a mais de 2 anos e a ultima experiência que eu tive com ele foi bem marcante. Quando cheguei no SPA para atender estava o pai e o menino do lado de fora me esperando longes um do outro e quando convido o paciente para o atendimento ele fala: “ hoje nem eu e nem ele vai subir”. Me aproximo dele e pergunto o que houve, o menino começa a gritar: “ essa peste, essa praga não deixou eu ir para o cinema, eu vou matar ele, de hoje não passa, estou avisando eu vou matar ele”. E agora o que se faz numa situação dessas? Lembrei-me naquele momento das sessões anteriores quando ele vinha falando bastante de como fazia para se comunicar com a sua mãe que mora alguns anos nos Estados Unidos e o convidei para dar uma volta e pedi ao pai que esperasse lá. Levei o paciente para a sala da informática e lá mesmo aconteceu a sessão. Ele me mostrou os e-mails que a sua mãe vinha mandando pra ele, entrou no Google Maps e mostrou ainda a sua casa e a sua escola. O paciente pode ser escutado mesmo fora do setting tradicional, a pergunta que eu faço é: será que vale a pena manter a ortodoxia e só realizar um atendimento nas quatros paredes em casos como esse por exemplo? Ou será que não é tempo da construção de uma clínica diferenciada, onde o sujeito possa ser escutado onde é possível pra ele naquele momento?
Foi esse o caminho da minha formação, e no meu trabalho de conclusão de curso eu não poderia fazer outra coisa a não ser me dedicar ao estudo do conceito que se faz indispensável para situar a clínica da psicose, a FORACLUSÃO.
Mas o que vem a ser a Foraclusão? Foraclusão foi o termo que Lacan utilizou para traduzir a palavra Verwerfung que está contida em algumas obras do Freud, que significa rejeição. Lacan retirou esse termo do vocabulário jurídico, que significa a abolição simbólica de um direito que não foi exercido no prazo prescrito. Durante a construção da monografia eu conversei com alguns advogados e pedi pra eles que me falassem um pouco do que se tratava a Foraclusão e para minha surpresa eles não sabiam responder e desconheciam tal palavra. Mas quando eu falava pra eles que significava a perda do direito por conta da perda de se ter perdido o prazo legal para o seu exercício, imediatamente eles me falavam que na verdade o conceito correto seria prescrição e não foraclusão. A conclusão que se chega é que a foraclusão é uma tradução equivocada do francês, mas que foi hegemonicamente aceita no Brasil.
O primeiro capítulo foi dedicado a uma pesquisa literária do termo Verwerfung na obra de Freud, bem como outras hipóteses consideradas por ele como causas possíveis para a psicose, como o conceito de defesa. O segundo capítulo procurei analisar alguns fragmentos da história dos casos clínicos do presidente Schreber e do Homem dos Lobos, que trazem questões essências para as discussões sobre a clínica da psicose. O terceiro capítulo é uma imersão na obra de Lacan e de outros autores com a relação ao conceito de Foraclusão do Nome-do-Pai, e de como este conceito se tornou central na teoria lacaniana das psicoses.
O primeiro texto de Freud onde aparece a Verwerfung caracterizada como mecanismo de rejeição é “As neuropsicoses de defesa” do ano de 1894. Freud estava nesse momento recebendo muitos pacientes e começou a perceber que eles gozavam de boa saúde até o momento em que o ego era confrontado com uma experiência aflitiva que o sujeito decidia esquecê-la, porque ele não sabia lidar com tal experiência. Esse esquecimento é o que produzia os sintomas na histeria, na obsessão e na psicose. Esse esquecimento nada mais é do que a operação da defesa. Que na obsessão a ideia intolerável é separada do seu afeto, mas continua na consciência ainda que enfraquecida e isolada. Já na psicose prevalece uma defesa muito mais poderosa e bem sucedida, onde o ego rejeita a ideia juntamente com o seu afeto e comporta-se como se aquela ideia jamais tivesse ocorrido. Assim quando a defesa é levada a cabo, o ego se encontra num estado de confusão alucinatória.
Em 1899 na carta 125 a Fliess, Freud questiona uma antiga formulação sua em que ele acreditava que a escolha da neurose estava relacionada com a idade que o trauma sexual ocorria. Freud abandona esta crença e introduz na carta a noção de um ponto de fixação do sujeito no desenvolvimento libidinal, que no caso da paranóia seria o seu estrato sexual mais primitivo que é o auto erotismo. É importante lembrar que Freud ainda não tinha construído o conceito de narcisismo, que só começou a ser formulado em 1911 no caso Schreber e melhor trabalhado em 1914 no texto sobre o narcisismo. Nesses textos fica muito claro que o ponto de fixação da paranóia é o narcisismo e o auto-erotismo é o ponto de fixação da esquizofrenia.
Em 1911, Freud escreve seu mais extenso trabalho sobre a psicose que é o caso do Schreber e gostaria de destacar dois pontos dessa obra. O primeiro é que Freud destaca que na psicose acontece um desligamento da libido em relação as pessoas e aos objetos, e ao invés dela ser transformada em inervação somática como na histeria, a libido vincula-se ao ego e é utilizada para o engrandecimento deste. O segundo ponto é que Freud explicando o conceito de repressão, ele percebe um equivoco em uma antiga formulação sua. Freud acreditava que aquilo que era suprimido internamente era projetado para o exterior, e através do caso ele passa ao entendimento de que aquilo que foi abolido internamente retorna desde fora. Afinal de contas, como projetar para fora aquilo que não existe dentro? A frase “o que foi abolido internamente retorna desde fora”, foi mais tarde muito bem apropriada por Lacan que afirmou “aquilo que foi abolido no simbólico, retorna no real”.
Em 1918, Freud escreve o caso do “Homem dos Lobos” que é um caso polêmico quanto ao seu diagnóstico na história da psicanálise. Apesar de Freud acreditar se tratar de uma neurose obsessiva, é possível perceber Freud com dúvidas em relação ao diagnóstico. É o próprio Freud que afirma que antes do Homem dos Lobos ser consultado por ele, já tinha passado por alguns sanatórios e o médico considerado um dos maiores especialista de seu tempo o Kraepelin o diagnosticou como um caso de insanidade maníaco-depressivo, ou seja, um psicótico. É justamente no caso do Homem dos Lobos que Freud usa o termo Verwerfung se referindo diretamente a castração, o Homem dos Lobos rejeita essa ideia, e essa rejeição aqui significa não ter nada a ver com a castração.
Em 1924, no texto “Neurose e Psicose” Freud chega a conclusão de que a psicose é o resultado das perturbações das relações do ego com o mundo exterior. Essas perturbações nada mais são do questões relativas ao problema da castração.
No final da obra de Freud se confirma aquilo que pode ser percebido ao longo de todo o seu trabalho, uma dificuldade em definir um mecanismo específico para a psicose. Ora ele usa renegar e ora rejeitar, sabemos que a renegação está muito mais no campo da perversão.
Ao contrario de Freud que apesar das suas construções sobre a psicose tinha claramente questões com essa clínica que o impediam de avançar. Lacan por sua vez investiu na clínica da psicose desde muito cedo, e sua paixão pode ser percebida no título de sua tese de doutorado: “Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade”, onde em 1932 ele já se propõe a debater com a psiquiatria da época os determinantes da psicose.
Antes de entrar propriamente nas idéias de Lacan acerca do conceito de Foraclusão eu considerei justo com o leitor do meu trabalho a explicação de alguns conceitos que acabam perpassando o da Foraclusão, como significante, Édipo, os três registros: real, simbólico e imaginário. E aqui me deterei no de Édipo porque não tem como não passar pelo Édipo, é através dele que o homem entra na ordem simbólica e os que não o atravessam se estruturam na psicose.
Diferentemente de Freud que postulou 2 tempos para o Édipo, Lacan no “ Seminário 5 - As formações do inconsciente” postulou 3 tempos. No 1º tempo a criança é identificada ao objeto de desejo da mãe, o falo. E a questão que se coloca para a criança é ser ou não ser o falo para assim satisfazer o desejo da mãe. Nesse primeiro tempo a lei que vigora é a da mãe, uma lei de poder ilimitado, onipotente onde só ela pode satisfazer a criança. A criança nesse momento tem uma imagem distorcida do seu corpo, e se encontra aqui aquilo que Lacan chamou de estádio de espelho, período que corresponde a formação do eu a partir da imagem do Outro. A relação com o Outro é imediata por não haver mediação do simbólico. O 2º tempo é o que inaugura a simbolização, no texto “Além do princípio do prazer” Freud formula a ideia do For-Da, onde a criança repete no brincar o aparecimento e desaparecimento da mãe e nele ela anuncia alguns vocábulos, denunciando a simbolização através de alguns fonemas. A relação então não é mais imediata como no primeiro tempo. Mas existe a necessidade da entrada de um terceiro na relação mãe/criança, que é a instancia paterna, que é aquilo que representa o pai no discurso da mãe, e o que representa o pai no discurso da mãe é o significante Nome-do-Pai, que barra o outro onipotente e desfaz a relação imediata inscrevendo o significante Nome-do-Pai. Existe uma homofonia das palavras Nome/Não em Francês que indica duas funções cruciais na constituição do sujeito: a de transmitir o não da interdição do incesto e o da nomeação do filho. O 3º tempo é marcado pelo declínio do complexo, onde o menino já pode dar significação ao pênis e a mulher se situar como objeto de desejo do homem.
Lacan traz uma questão no seminário 3 bastante interessante, ele vai dizer o seguinte: que a questão não é saber porque o inconsciente está a flor da terra na psicose e sim porque ele retorna no real. Ele retorna no real justamente porque não há inscrição simbólica do significante Nome-do-Pai. Quando a gente admite a falta desse significante na psicose, admitimos que algo falhou no Édipo.
Lacan vai nos dizer que antes de qualquer simbolização há uma bejahung, uma afirmação primordial que posteriormente pode ser recalcada ou desmentida, ou seja pode dar numa neurose ou numa perversão, mas há casos em que como diz Lacan pode acontecer acidentes, pode acontecer uma verwerfung, uma foraclusão, e o que cai sob o golpe da verwerfung só pode dar em psicose.
Freud situou no caso Schreber a homossexualidade como causa ativadora da paranóia da psicose, Lacan vai falar que essa é uma afirmação imprecisa e Colette Soler vai nos dizer que a homossexualidade delirante de Schreber aponta para uma questão transferencial e não para a causa.
Outro ponto que quero destacar é quanto ao diagnóstico, Lacan nos fala que certa vez foi chamado para ver uma paciente que realmente apresenta um comportamento difícil e queria que ele confirmasse o diagnóstico de psicose, mas ele fala que antes de qualquer coisa é preciso verificar se há distúrbios de linguagem. O que vemos hoje é uma avalanche de equívocos quanto ao diagnóstico. E a foraclusão não pode ser tomada como um critério nosográfico para definição de um diagnóstico de psicose, ela não é um fenômeno, mas os seus efeitos explicam os fenômenos. No texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” Lacan vai nos dizer que a Foraclusão é a falha que confere a psicose sua condição essencial com a estrutura que a separa da neurose. É importante atentarmos para isso, a Foraclusão é a condição essencial e não a causa do desencadeamento de uma psicose. É preciso que haja uma causa ocasional. Podemos ver isso muito claramente no caso Schreber, ele tem 42 anos quando é nomeado a vice presidente do tribunal regional, e ali ele se vê numa posição de muita responsabilidade e se dá então o primeiro desmoronamento. Depois com 51 anos de idade ele é nomeado como presidente da corte de apelação, chegando ao ápice da hierarquia e Schreber não dá conta de está numa posição de lei e acaba desencadeando sua psicose mais uma vez.
Gostaria de terminar assinalando duas coisas, a primeira é que por mais que Lacan tenha avançado significativamente em relação a Freud no que diz respeito a clínica da psicose, isso não significa que a psicose continuará sendo o que era para Freud, uma doença da libido. E a outra é que falar e trabalhar com a psicose é como falar do registro do real, é algo da ordem do impossível de se encerrar, é uma lacuna que não fecha.
Guilherme Manhães